Olá, bom dia! Aqui estou eu de novo na sua caixa de entrada 🙃
Meu plano para hoje era enviar um texto sobre períodos sabáticos e pausas na carreira, mas ele começou a mudar quando resolvi organizar as minhas newsletters na segunda-feira passada e acabei caindo num vórtex inesperado.
Eu assino newsletters quase como um vício. Para mim, elas são miniuniversos, pequenos veículos (quase sempre) individuais. Queria que todo mundo que eu gosto, de amigos a artistas, criasse uma para eu poder ver como essa pessoa projetaria este espaço, o que ela escreveria, por qual periodicidade optaria. Dá para conhecer muito de alguém pelas escolhas que ela faz em ambientes limitados.
Apesar de gostar muito por achar que elas são o que mais se aproximam do que um dia foram os blogs, essa quantidade de e-mails chegando diariamente deixa minhas caixas de entrada1 (e vida) caótica de tempos em tempos. Era isso que estava acontecendo há cerca de três meses. Fui deixando para ler depois e, quando me dei conta, estava completamente afogada. Na segunda-feira, finalmente parei para me desinscrever das que eu já não estava mais curtindo e categorizar as restantes em tags. Pensei que minha semana ficaria mais leve instantaneamente.
Porém, conforme elas foram chegando, agora organizadas, senti que aproveitá-las ao máximo era quase uma obrigação. Quis me munir de toda a informação nelas existentes a fim de alimentar minha newsletter com mais confiança. Cada link me levou a outro link e cada novo texto foi me apresentando novos universos. Eu passei quatro dias imersa em todo e qualquer assunto. Quando finalmente parei para escrever algo para esta newsletter, percebi que meu cérebro estava sugado. Eu quis superalimentá-lo para me sentir mais segura, mas o resultado foi o oposto. Comecei a achar que nada do que eu pudesse escrever daria conta da totalidade de um assunto, e fiquei paralisada.
Na sexta, estava prestes a me afundar em mais uma rodada de links, mas resolvi tomar um banho, algo que sempre me ajuda a pensar melhor. Lembrei que o Lucas havia me contado uma vez sobre alguém que estudava tecnologia e era contra links na internet. Na época, isso me pareceu um pouco absurdo, um contrassenso. O nome do que é considerado o primeiro blog da internet é Links from the Underground!! Basicamente, todas as newsletters, esse meio que eu tanto gosto, são listas com indicações de links. Muito da graça de um texto online, em comparação a um no papel, é a possibilidade de ir clicando neles e se perdendo.
A pessoa que falou sobre os links era Nicholas Carr, um escritor estadunidense que, em 2010, lançou The Shallows: What the Internet is Doing to Our Brains (A Geração Superficial: O que a Internet está Fazendo com os Nossos Cérebros), livro que previu muito do que estamos vivendo atualmente em uma época em que a internet não ocupava nem de longe o espaço que ocupa hoje (ele chegou a ser bem criticado no lançamento por considerarem as previsões exageradas demais).
Em 2020, no aniversário de dez anos da publicação, Carr conversou com o jornalista Ezra Klein em um podcast e falou sobre o dilema dos links, mas também sobre várias outras questões que me pareceram interessantes relacionadas à dificuldade que estamos tendo de nos concentrar, ler livros, escrever com convicção, pensar com clareza etc. Eu me comprometi a ouvir sem ficar parando a cada dois minutos para pesquisar cada palavra que eles falassem, mas no minuto dois já me vi perdida entre sete abas abertas. É principalmente sobre essa incapacidade de focar que decidi tentar escrever hoje.
Cada escolha uma renúncia isso é a vida
O papo começa com os dois relembrando o conceito básico de McLuhan do meio ser a mensagem. O exemplo que ele dá para quem nunca conseguiu entender muito bem o que o filósofo estava querendo dizer é o da transformação da sociedade a partir da leitura de textos. McLuhan dizia que quando as pessoas passaram a ficar sabendo das notícias lendo os jornais em suas casas e conhecer histórias por meio de livros, os humanos ficaram mais solitários. Nós deixamos de estar presentes na natureza e de angariar o nosso conhecimento pela observação e pelas trocas pessoais nas conversas para adquiri-lo em páginas escritas por indivíduos que provavelmente não conhecíamos. E isso trazia, entre perdas e benefícios, uma grande mudança na forma de nos relacionarmos uns com os outros.
Ele argumentava que a dominação da página impressa sobre os outros meios acabou fazendo com que os nossos demais sentidos, como a audição e o olfato, se curvassem para a visão. Atualmente conhecendo a neuroplasticidade, ou seja, a maleabilidade eterna do nosso cérebro para se adaptar ao ambiente, é possível explicar esse fenômeno: ao estimularmos excessivamente uma parte do cérebro, outras que deixamos de usar vão atrofiando. É como um músculo na academia (ou eu me dando conta de que adorava dançar na adolescência e que agora simplesmente não consigo mais me mexer coordenadamente porque fui contaminada pela vergonha ao ir crescendo).
Nós viramos bons leitores, com todos os benefícios que isso traz (tipo nos deixarmos encantar por um romance avassalador ou aprender com a não-ficção publicada por pessoas distantes), mas também perdemos um pouco a capacidade de sentir o mundo a partir de outras habilidades. Algumas sociedades, que não eram tão focadas no texto, tinham conhecimentos muito distintos para ler a natureza, e nós os abandonamos com o tempo porque tivemos que reprogramar nosso cérebro para virarmos bons leitores de palavras. Isso não quer dizer que ler é pior do que ouvir e que a sociedade retrocedeu ao passarmos a ter contato com a escrita, é apenas uma compreensão de que estamos sempre perdendo algo quando abraçamos o novo.
Carr argumenta que, com a internet, o que nós estamos perdendo é a capacidade de foco em todas as áreas, inclusive na de nos dedicar a esse hábito da leitura que adquirimos anos atrás. A dificuldade que hoje temos de conseguir ler alguma coisa extensa se dá porque a internet é uma competição injusta para outros meios, como o livro. Injusta porque os humanos são naturalmente agregadores de informações e ao termos consciência de que toda a internet está disponível, fica difícil não se deixar seduzir2.
“Deixar o Google lembrar de tudo não faz com que nosso cérebro tenha mais espaço para pensar em coisas importantes, acaba atrofiando a memória.”
Dessa forma, o meio internet, com todos os seus atrativos, banners, fotos, imagens, redes sociais, notificações e links nos impede de virarmos “deep readers” (leitores profundos). Deixamos de treinar essa capacidade para aprender a absorver pouca coisa de muita coisa. Em uma nota pessoal, eu realmente me lembro de me sentir muito mais útil no trabalho quando eu era vista como uma metralhadora de referências e novidades (e eu aperfeiçoei exageradamente essa habilidade porque achava que, assim, poderia justificar a minha presença nos ambientes em que trabalhei).
Especificamente sobre os links, Carr argumenta que a mensagem que eles provocam no nosso cérebro é a da distração. Ou seja, abrimos um texto, vemos várias palavrinhas coloridas sublinhadas e automaticamente começamos a pensar: “o que será que tem aí atrás? E se seu clicasse pra ver rapidinho?”. Eles viram pequenas iscas, o tal do deep reading fica mais difícil e, no limite, a experiência da leitura fica bem menos agradável.
Criando novas ideias
Deep reading, de acordo com Carr, é conseguir ficar focado em uma leitura a ponto de sentir clareza na mente. Notar que todo o conhecimento que temos armazenado começa a vibrar até conseguirmos fazer conexões e conceber novas ideias. É se desligar do mundo exterior. Ele ainda sublinha que, para ele, essa é uma das atividades mais ativas que podemos fazer e que não há nada de passivo na leitura.
Algo que o Ezra pontuou durante a entrevista e que fez bastante sentido para mim foi o quanto a parte mais relevante de um livro não é realmente o argumento ou a história, mas sim a nossa interação com o livro, o que conseguimos juntar dele com o que já vivemos. Só que em um mundo em que ler também virou medida de produtividade, fica cada vez mais difícil elaborar essas novas ideias a partir das leituras que fazemos. Isso explica bastante o porquê de eu ter lido muito na semana passada e ter me sentido exausta, pouco estimulada e incapaz de escrever qualquer coisa.
O que fica para mim disso tudo é que ao passo que somos capazes de celebrar os ganhos da internet, é muito importante também termos consciência do que estamos perdendo (assim como em todos os outros meios). Apesar de já ter desconfiado em alguns momentos, eu nunca tinha parado para pensar que uma tela cheia de links me causava certa angústia e fazia minha experiência de leitura pior. Desde que efetivamente percebi, posso me policiar para ler textos de uma vez e só depois ir voltando nos links, ou mesmo não voltar, caso sinta que a leitura foi suficiente naquele momento. Entender que a minha falta de concentração (mesmo em atividades offline) tem relação direta com o tempo que passo na internet pode me ajudar a criar mecanismos de escape.
Obviamente não sou contra a tecnologia, mas é inquietante se dar conta de que ela molda a forma como percebemos as coisas e que os conceitos de McLuhan que aprendi na faculdade nunca fizeram tanto sentido na minha vida prática: não é realmente o conteúdo, mas o meio que controla de fato a nossa interação com o mundo. Um exemplo que me vem à cabeça agora é o da A Mulher da Casa Abandonada, em que vimos que o meio, no caso um podcast narrativo, influenciou totalmente o modo como a história foi recebida (uma vez que ela já havia sido contada na televisão e no jornal impresso). Outro exemplo, esse mencionado na conversa entre Carr e Klein, é o de citações de trabalhos acadêmicos. Acreditava-se que ao digitalizar toda a produção científica, estudiosos que não eram muito conhecidos ou vistos teriam mais chances de serem encontrados e citados. Foi comprovado que a internet, no entanto, ao nos induzir a usar ferramentas de busca, faz com que nos deparemos sempre com os mesmos resultados, que seguem o padrão mais popular primeiro e com mais destaque. No geral, as pessoas não começaram a citar tantos autores novos ou desconhecidos e os que já eram famosos ganharam ainda mais relevância – nesse contexto, ir fisicamente a uma biblioteca poderia levar a mais descobertas do que o esquema digital. Isso se repete nos streamings de música e de filmes (a Netflix possui um catálogo de milhares de filmes e séries, mas sempre que você entra parece que só existem os mesmos) e nas newsletters não é muito diferente. Existe um trabalho de curadoria que é único de cada autor, claro (e é nossa responsabilidade buscar vozes diversas para acompanhar), mas, em uma semana, muitos links se repetem entre as 40 newsletters que eu assino.
Não sei muito bem como terminar este texto e se tenho conclusões ou soluções para propor (o próprio Carr se diz pessimista em relação ao futuro do foco na cabeça dos seres humanos). Ainda estou tentando encontrar uma forma melhor de lidar com a quantidade de newsletters que assino e com meu consumo de internet e redes sociais, o que é um desafio imenso quando nos damos conta que o Google, por exemplo, determina a forma de se escrever na web hoje e faz com que redatores tenham que aprender dezenas de técnicas padronizantes e entediantes de SEO (entre elas, colocar muitos links ao longo de seus texto) para terem suas matérias encontradas e gerarem mais audiência para os veículos e empresas em que trabalham.
Por ora, quero pelo menos conseguir identificar melhor os momentos em que desejo ser exposta a um monte de dopamina e links (como quando abro uma newsletter tipo a Margem, que é feita de links peneirados por um ser humano de quem gosto da curadoria), e outros em que ler alguma coisa e deixar ela se acomodar na cabeça junto com os meus outros pensamentos tem que ser simplesmente suficiente. Tentar engolir o mundo e me empanturrar de referências o tempo todo não vai me ajudar a me sentir mais segura. No limite, fará com que meu cérebro fique cada vez mais cansado. Talvez o melhor conselho que eu tenha tirado dessa semana mentalmente caótica é que ainda não há nada melhor para destravar o pensamento do que sair da frente da tela e ir tomar um banho.
É isso por hoje, obrigada por ter chegado até aqui!
Nathalia
Para ser coerente com o tema da newsletter, não coloquei nenhum link ao longo do texto apesar do meu dedo ter coçado muito. Vou deixar aqui apenas o link do podcast do Nicholas Carr para quem quiser ouvir da fonte original, mas já adianto que essa newsletter é basicamente uma transcrição dele. Por favor, Vox, não me processe.
Ok, esse texto foi gigante e possivelmente chato para quem não se interessa por links da internet. Segue abaixo uma pequena lista de aleatoriedades (que não são links) para dar um pouco de leveza para esta newsletter.
4 coisas banais que fiz essa semana e me deram alegria
Trouxe um abajur que estava dando sopa na sala para iluminar e enfeitar minha mesa de trabalho. Enxergar com mais nitidez pode mudar a forma como você escreve!!
Fui assistir a um musical com um amigo e saí extasiada do teatro depois de ver seres humanos atuando, dançando e cantando maravilhosamente bem por três horas.
Encontrei amigos para beber cerveja duas vezes na semana!
Finalmente coloquei os botões faltantes nesta saia que comprei em 2016 em um bazar e até agora não tinha conseguido usar.
No plural porque criei um e-mail exclusivo para recebê-las na tentativa de me organizar melhor.
Um estudo da Universidade do Texas diz que se o nosso celular está perto, mesmo desligado, não conseguimos nos concentrar direito em qualquer atividade porque sentimos que há algo de mais interessante acontecendo lá.
Oi Nath.
Muito fã da sua newsletter, esse texto em especial me pegou demais. Colocou sob perspectiva alguns hábitos de consumo digital que eu tenho e propago pela primeira vez. Sempre me vi como essa pessoa com um amontoado de links, facilidades e referência ao ponto de entender que muitas vezes, quando eu não tenho nada pra compartilhar - a última notícia incrível, esse artista novo, esse filme maravilhoso - eu me sinto menos. Bom, nada como a vigília como primeiro passo até a melhora.
Beijos digitalmente cansados de cá e no aguardo da próxima.
oi, Nath! Muito legal o que você traz no texto. Esse atrofiar dos sentidos que o autor comenta faz sentido.. temos cinco, usamos um, e usamos de um modo "viciado". Não sou muito de poesia, mas gosto de como alguns poetas colocam as coisas em relação ao indivíduo. O Manoel de Barros tem um verso assim: "As coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis". Quando ele diz isso, acho que fala dessa falta de sensibilidade, um modo unilateral de enxergar e sentir. Enfim, talvez o link seja (também) o que fazemos com o que a vida nos apresenta. As coisas em relação a nós, nós em relação às coisas.
Parabéns pela newsletter!
(e já fazendo a política da boa vizinhança: se quiser dar uma passada lá na minha news, tá convidada).
Beijos.