Olá, bom dia!
Você assistiu ao Year in Search do Google deste ano? Se não, coloquei logo abaixo para estarmos na mesma página caso você tenha escolhido ler esta newsletter.
O vídeo, que é uma espécie de clássico digital, sempre dá uma emocionada, mas desta vez ele me despertou ~outras coisas~. Destacando a palavra mudança, mais especificamente a pergunta “Can I change?”, surgem nos dois minutos algumas cenas comuns dessas retrospectivas, tipo atletas batendo recordes e artistas ganhando prêmios, mas queria focar na imagem principal que o Google escolheu para definir 2022: vídeos de pessoas que mudaram de emprego ou de país, que começaram a fazer atividades físicas, pintaram o cabelo de rosa ou pegaram as economias e compraram uma fazenda. Por cima, perguntas singelas do tipo “é possível ser original?”, “como ser espontâneo?”, “como ser um amigo melhor?”, “é possível mudar?”, que culminam na linda frase “para todos que veem não o que o mundo é mas o que ele pode ser”. Mais do que nos outros anos, vi nos comentários pessoas descrevendo que se sentiram inspiradas e empoderadas depois de assistir.
É claro que isso bateu forte em mim já que este foi o ano que tirei para tentar mudar de vida (Can I change my life? Can I change my style? são perguntas que apareceram no vídeo e que já renderam newsletters por aqui também). Consigo sentir a empolgação dos profissionais pautados para escolher o tema do vídeo quando eles tiveram a ideia de usar “Can I change?” como fio condutor. É um tema bom porque combina com resoluções de fim de ano e traz uma mensagem otimista sem ignorar as desgraças que aconteceram nos últimos meses (e é ainda uma mudança de espírito dos vídeos dos dois últimos anos que tiveram que falar de Covid). Além de achar muito intrigante e até fofo descobrir que pessoas realmente fazem esse tipo de pergunta existencial pro Google, não consegui deixar de sentir, porém, que esse vídeo, com esse tema, neste ano, existiu por causa do TikTok — e de coisas tipo o Notion, aplicativo de notas/organização do qual sou fã e já fiz altas defesas (e que ficou ainda mais popular por causa do TikTok).
O TikTok
Lugar em que a realidade é extraordinária e divertida e que parece nos dizer o tempo todo que só depende de nós fazermos acontecer. Li em alguma matéria uma pessoa dizendo que enquanto o Instagram dá valor ao resultado, ao momento perfeito, o TikTok glorifica o processo, o meio do caminho. O que talvez seja verdade, só é meio engraçado porque no fim das contas continua sendo uma glorificação e muito focada no indivíduo. Você assiste vídeo atrás de vídeo de pessoas romantizando cada aspecto de suas vidas (e literalmente dizendo que esse é o objetivo delas), filmando cafés gelados em câmera lenta sendo colocados em copos de vidro, esquentando salmões com arroz e cubos de gelo no microondas, tirando todos os alimentos de suas embalagens e acomodando-os em novas embalagens de acrílico. Provavelmente, você não vai fazer nada naquele momento sobre essas cenas que assistiu, mas pode ser que de repente você comece a se questionar se não daria pra deixar suas comidas um pouco mais bonitas, se os seus potes não são meio feios, se a sua geladeira não poderia ser mais eficiente, se não existem coisas erradas demais em você sendo que há um jeito de arrumar todas elas, que é sendo a protagonista da sua própria vida! Repare que no TikTok (e também no feed do Instagram) as pessoas estão aparecendo cada vez mais sozinhas, não é estranho que estejamos perguntando pro Google como ter amigos.
A rede, que me empolgou no começo porque é mesmo divertida e teoricamente mais leve do que o Instagram nas neuroses proporcionadas, rapidamente passou a moldar o cotidiano: as músicas viraram músicas do TikTok, a dança é a do TikTok, os eventos são inspirados em tendências do TikTok. Se antes os momentos contaminados pelas fotos perfeitas de influenciadores eram casamentos e viagens, agora é a nossa rotina inteirinha, literalmente a esponja que usamos para lavar louça. E é curioso porque o TikTok normalmente é descrito por especialistas em marketing (e por eles mesmos) como a rede social que mais se aproxima da realidade.
Sim, as pessoas estão lá mostrando o seu dia a dia, até a parte mais banal dele, e tudo é inofensivo e lindo até que você percebe que um objeto estranho foi colocado dentro do freezer para fazer com que as pessoas nos comentários perguntem o que é aquilo, ou que, pelo mesmo motivo, a lista de seis itens para deixar a sua casa mais eficiente só teve cinco itens, ou, ainda, que o tapete encardido e perdido há anos, na verdade, foi sujado propositalmente no dia anterior apenas para um vídeo satisfatório. A Haley Nahman, autora da minha newsletter preferida que já citei aqui incontáveis vezes, escreveu isto uma vez e eu concordo absolutamente: “a complexidade da documentação é que sempre que tentamos capturar a realidade, nós a modificamos”.
No começo deste ano, quando eu estava pondo em prática uma das minhas resoluções, que era comer melhor, resolvi gravar a minha tentativa e fazer um vídeo com cinco dias de cafés da manhã, uma forma de me forçar a ingerir esses alimentos e também de ver como seria “produzir conteúdo” sobre mim e não para um veículo como estava acostumada. Não preciso me alongar para vocês imaginarem a cena: eu com meu tripé e ingredientes escolhidos a dedo para ficarem bonitinhos na câmera e filmando na mesa da sala e não na cozinha porque a luz era melhor. O vídeo ficou ótimo, realmente passou a sensação de paz que absorvi de outra pessoa e queria ter vivido, mas não vivi.
A minha questão com tudo isso é que parece que quanto mais você assiste TikToks de pessoas que “mudaram de vida” (seja fazendo café da manhã todo dia ou indo viver na Escócia), mais você se sente estimulada e ao mesmo tempo desconectada do mundo ao seu redor. Uma sensação que a gente se deparava mais no fim do ano só que agora acontecendo ao longo do ano inteiro, o tempo todo. A popularização do Notion para uso pessoal a fim de catalogar não apenas os estudos ou tarefas, mas moldar um ser humano completo e perfeito, que precisa ser excelente no corpo, na casa, nas relações e na mente, é a cereja do bolo.
Partindo do princípio que o Google tenha falado a verdade e não só escolhido um termo oportuno na lista de buscas de 20221, não me espanta que termos estilo “como mudar de vida?”, “como encontrar minha paixão?” tenham sido muito buscados. Só não sei se isso é algo tão legal como o vídeo dá a entender. Ou talvez seja o meu algoritmo que foi rápido em perceber que passei os últimos doze meses com uma certa angústia dentro de mim acreditando que eu precisava mudar cada aspecto da minha vida e potencializou a sensação me mostrando mais e mais vídeos deste tipo.
Ter vontade de mudar é normal, fazer listas de resoluções é um ritual saudável de fim de ano para muita gente, não há mal nenhum em querer ajustar o que nos incomoda, mas que o foco tenha sido em mudanças tão primárias me soa sintomático e me deixa um pouco triste. “Como ser uma amiga melhor?”. Será que você é realmente uma amiga ruim? Ou você viu vídeos demais no TikTok de amizades perfeitas e começou a achar que não é boa o suficiente? “Como ser original?”. Você está se sentindo enclausurada pela massa homogênea de pessoas ao seu redor ou nos vídeos as pessoas estão dizendo que para garantir seu lugar no mercado é preciso ser original? Em uma nota pessoal, eu ando com muita vontade de passar meu aniversário do ano que vem em um lugar isolado e idílico, mas acho que é porque vi vídeos demais como este recentemente:
Na parte VII do ensaio Dreamers in broad daylight: ten conversations, a autora Leslie Jamison define o Instagram como um “buffet of daydreams: all you can eat, and none of it yours”. Na sequência, ela coloca que talvez nenhuma rede social tenha melhor personificado esses nossos devaneios do que o TikTok, uma mídia “na qual as pessoas encenam seus devaneios, se divertem sonhando acordadas e reproduzem o interior desses sonhos como microdramas cômicos absurdos”. É um círculo vicioso que se esconde atrás da palavra realidade. Uma pessoa assiste várias outras mostrando suas realidades e deseja mudar um pouquinho a sua vida a partir daquilo que está sendo mostrado, mas essas pessoas já estavam apresentando uma realidade alterada pelo desejo de parecer um pouco mais com a realidade mostrada pela pessoa anterior. Há como responder, nessa lógica, as perguntas que estamos fazendo ao Google? E a questão também deveria ser: quem é que está respondendo?
No texto, Leslie termina nos pedindo cuidado: “um sinal de alerta das mídias sociais é que estamos vendo nossos desejos ganharem forma antes de termos que moldá-los nós mesmos, com outra pessoa fazendo o trabalho de querer por nós; podemos estar ainda terceirizando esse trabalho, como terceirizamos tantos outros”. Será que nossos desejos andam sendo nossos mesmo?2
Deixo você com a pergunta, e é isso por hoje!
Obrigada por ter lido até aqui, bom domingo e até semana que vem (talvez),
Nathalia
Se o Google tiver mentido tudo bem porque existem outras evidências, como a lista das matérias mais lidas e salvas no Pocket em 2022, que envolve títulos como “Um guia para você se livrar de quase tudo”, “Como querer menos?”, “Um jeito simples de se apresentar”.
Dito tudo isso, ainda farei minha listinha de resoluções neste fim de ano.
Adorei demais a reflexão (e me emocionei com a retrospectiva do Google). Eu, que sempre fui early adopter, consegui escapar do TikTok (pelo menos por ora!). Sigo feliz sem ele, vendo apenas o que é levado para outras redes que ainda sigo (menos do que outrora), mas me interessa muito o seu impacto na indústria da musica, inclusive deixo um link bem interessante que acabei de ler a respeito: https://pennyfractions.ghost.io/tiktok-cannot-afford-music/
Que texto maravilhoso! Acabei de ler para o meu marido, porque os pontos que trouxe, são pontos que venho sempre falando com ele rs. Sobre o tik tok, eu instalei e desinstalei no dia seguinte, minha vida estava um caos e ver tantos vídeos de rotinas perfeitas foi um gatilho. Hoje me dei conta que nunca tive vontade de reinstalar e que tenho evitado vídeos (principalmente os mostram a rotina). E tenho constantemente me perguntado se o que eu desejo, eu realmente quero, ou foi só pq viu que outras pessoas querem, tem funcionado, pelo menos enquanto hahaha