Olá, bom dia! (semana passada além de ter colocado o número errado no título da newsletter eu esqueci de dar bom dia no começo do texto, caos total)
Assunto meio aleatório hoje, mas há um tempo venho reparando que algumas garotas que sigo no Instagram vez ou outra comentam sobre seus problemas estomacais/intestinais. No começo estava achando interessante, curiosa até pela coincidência, pensei que eventualmente elas compartilhariam algo mais profundo sobre o assunto e eu, que desde que tive Covid tenho achado meu sistema digestivo meio esquisito, talvez pudesse angariar alguma pista despretensiosa do que está acontecendo — obviamente a ser verificada depois em fontes confiáveis.
Acontece que o assunto vem sendo abordado de forma tão casual, como se fosse um adereço de stories, que não pude evitar senão pensar que aquilo devia fazer parte de alguma “estética do TikTok”. Acho que meu faro jornalístico ainda está apurado, pensei, quando fui pesquisar e caí em um monte de artigos gringos sobre a hashtag #hotgirlswithIBS. Parece que ter síndrome do intestino irritável (em inglês, irritable bowel syndrome) agora é legal.
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Caso você tenha ficado confusa assim como eu, basicamente, a hashtag citada acima possui quase 40 milhões de visualizações no TikTok e conta com garotas jovens ~quebrando o tabu~ e falando com humor e sem rodeios sobre inchaço abdominal, gases, diarréia, entre outros sintomas de uma síndrome que no fim das contas é um termo guarda-chuva. A melhor matéria que encontrei sobre esse movimento (?) foi a da revista The Drift. Nela, a autora Natasha Boyd reforça minha desconfiança: “Virou um tópico popular entre influenciadoras como Emma Chamberlain, que reconhecem o valor do marketing do bem-estar e fizeram muito para tornar a diarréia e os gases intestinais marcas da feminilidade moderna. Empresas têm sido rápidas em capitalizar na tendência: você pode comprar diversos moletons com o tema IBS que ‘celebram funções naturais do corpo feminino’ ou estampados com ‘Hot Girls Have IBS’”. E um detalhe: muito da ideia de transformar a IBS em algo “relacionável” online veio da CEO de uma companhia bem rosa millennial de probióticos chama BelliWelli, que chegou a colocar a frase “Hot Girls Have IBS” na Times Square.
É claro que falar sobre questões do funcionamento do corpo humano deve ser naturalizado, principalmente quando é algo que acomete mais as mulheres, como pesquisas apontam que é o caso dessa síndrome. O que me chama atenção é que parece ter virado uma cobiça por um capital social que só faz sentido na lógica das redes sociais (tem algo de uma nova camada do tropo da cool girl e da banalização de problemas de saúde mental também, já que apesar da IBS não ter causa definida, ela comumente tem a ver com ansiedade e depressão) e algumas outras questões nebulosas por trás desses posts. Por exemplo, ao passo que podemos ver a tendência de certa forma como libertadora (sim, por anos às mulheres foi negado o direito de se ter ou de se falar sobre suas funções corporais), dá para perceber que algumas estão sendo novamente vítimas de um discurso de culto à magreza e privações que segue sendo perigoso. “A ascensão cultural da IBS faz sentido no contexto do bem-estar e da positividade corporal – não é mais kosher insistir que ‘nothing tastes as good as skinny feels’1. Já se é esperado que as mulheres se amem hoje em dia. No lugar, elas têm que declarar que cagam nas calças se comerem glúten ou laticínios para que a abstenção desses alimentos seja vista como um ato de autocuidado, e não como um distúrbio alimentar. Ou seja, em vez de escolher não comer, as pessoas com IBS simplesmente não podem comer”, observa Natasha.
A reportagem da The Drift aponta que houve mesmo uma piora nos sintomas de indivíduos que já sofriam com a síndrome do intestino irritável durante a pandemia e também mais casos sendo reportados pela primeira vez, mas que entre as principais causas de problemas no sistema digestivo estão na verdade distúrbios alimentares e o aumento do número de pessoas sofrendo com insegurança alimentar no mundo. Esses fatores não rendem vídeos virais no TikTok.
Enfim, as matérias que encontrei foram publicadas entre maio e agosto, então me desculpem se esse assunto estiver batido. Ele está fresco na minha cabeça não só porque pode ser que eu seja uma “not so ‘hot girl com IBS’”, mas principalmente por eu ter perdido dois tios nos últimos dois anos por causa de câncer nessa região, então ando pesquisando bastante sobre o tema. Talvez eu tenha ficado desproporcionalmente incomodada com essa tendência.
Clima de festival
A minha ideia para hoje, na verdade, era fazer um texto sobre todos os sentimentos que o Primavera Sound me causou, mas acho que a questão digestiva estava mais forte no meu âmago. Ou então eu simplesmente não tive a coragem de abrir com isso porque dentre tantos posts de felicidade e catarse espalhados pelo Instagram assumir que eu não me diverti tanto assim poderia atestar que ou eu sou muito chata ou do contra ou que não sei aproveitar as coisas boas da vida. O que é tudo verdade, claro.
Tirando a volta do primeiro dia, em que precisamos andar kms pela Marginal até encontrar um táxi que nos aceitasse, eu achei o festival muito bem feito e organizado. A curadoria foi tão certeira que pareceu quase sem criatividade, uma dezena de algumas das mulheres mais incríveis da música juntas, em dois dias e três palcos. A questão é que quando um show acabava já era hora de correr para o outro, parar para descansar (muito necessário para o meu bem-estar atualmente) significava perder minutos preciosos de apresentações extremamente pontuais. Nunca pensei que “reclamaria” da pontualidade de alguma coisa. Meu corpo de 29 anos definitivamente não é o mesmo dos 23 que andava pra cima e pra baixo no Lollapalooza acompanhando fotógrafos de street style para cobrir os melhores looks para a ELLE e ainda corria nas folgas para ver os artistas preferidos.
O ambiente 100% concreto e sem muitas distrações de lounges ou ativações, a pouca presença do sol porque os shows que eu queria ver eram todos no entardecer ou de noite também dificultaram o “entrar no clima de festival”. É um festival grande e pequeno ao mesmo tempo, o que faz com que seja confuso calibrar as sensações. Não sei como traduzir isso, mas as coisas no Primavera pareciam mais diretas. Só há um caminho que separa um palco do outro e nada acontece no meio dele. O que na verdade é muito bom, há um foco grande na música, mas com certeza foi um combustível para a minha ansiedade. Eu várias vezes pensei “estou me divertindo, estou gostando desse show, mas parece que tem alguma coisa errada (?)”.
Comecei a escrever sobre isso e imediatamente uma newsletter da Haley chamada “Season of envy”, sobre a chegada do verão em Nova York, veio à minha cabeça. Tem a ver porque as sensações que ela descreve, uma aparente e iminente urgência de aproveitar cada segundo da estação dos encontros, do calor, da exuberância, para mim é exatamente igual à de ir a um festival. É um fomo enquanto estou vivendo algo e sem a parte do missing out. Acho que a forma como os shows foram divididos acentuou isso no Primavera. Às 20h eu já estava exausta e com frio, mas o que eu havia planejado para a minha experiência, meus primeiros shows em muito tempo, era chegar para dançar ao som da Jessie, contemplar a Mitski e me emocionar com a Lorde com muita energia.
Eu descobri que ir a um festival hoje para mim é definitivamente querer ficar na parte de trás, onde minha estatura mediana consegue enxergar melhor o telão, mas achar que na verdade quero ficar na frente espremida. Assim como a Haley no verão tinha uma imagem muito clara do que seria aproveitar a estação “dos morangos, das regatas e dos rooftops” e a realidade ser que em boa parte do tempo ela só queria ficar deitada em casa descansando. Isso com certeza tem a ver com o Instagram, onde parece que a experiência de todas as pessoas está sendo superior a sua. Ou melhor, sendo a experiência correta: ficar o mais perto possível do palco, andar em um grupo grande de amigos, ver todos os shows (e gostar MUITO deles) e usar um look na medida perfeita entre o confortável e o interessante.
Sim, eu sei que a essa altura da vida online, mais de dez anos desde o lançamento do Instagram e centenas de posts da Obvious depois com a frase “o Instagram não é a vida real”, dizer que esse tipo de coisa mexe comigo é frustrante. Mas acho que a sensação provocada por um festival, assim como a do verão, é essa consciência de que, como a Haley descreve, “o verão começa a acabar no momento em que ele começa”. O que se traduz para festivais como o desmoronamento das expectativas no momento em que pisamos nele e a constatação de que o tempo vai escorrendo das suas mãos e não há suficiente para fazer jus ao dinheiro que você gastou, à ilustre presença de tantos artistas que não costumam vir ao Brasil, e à imagem de felicidade ou catarse que documentários, livros, filmes e fotos no Pinterest foram eternizando na nossa cabeça do que aquilo deveria promover (ainda mais nesse momento de retomada de grandes eventos). No fim, eu gostei de alguns shows, outros nem tanto, passei algumas horas feliz em finalmente ouvir as músicas que eu sempre ouço no banho ao vivo, mas não tive nenhuma epifania por causa delas. Eu falhei em criar memórias dignas de serem contadas depois e por isso já estava me sentindo frustrada enquanto o evento acontecia?
Peço licença para citar o Mark Fisher pela terceira vez nesta newsletter, mas acho que esse parágrafo de um post do blog dele sobre o slogan de uma rede de televisão britânica para a cobertura da Copa do Mundo de 2006 explica bastante:
“No início da Copa do Mundo, Savonarola e eu ficamos horrorizados quando a ITV revelou que o slogan promocional de sua cobertura seria a frase: ‘Que comecem as memórias’. Como Savonarola observou, aqui estava um slogan que, pelo menos, era pelo tão sombriamente ressonante quanto ‘bem-vindo ao deserto do real’. A temporalidade sugerida pela frase ‘que comecem as memórias’ é, à primeira vista, bizarra, mas imediatamente familiar. Uma estranha sensação de comemoração antecipada explica todo tipo de fenômeno cultural pós-moderno, desde a proliferação de indesejados 'making-of' em DVDs não assistidos, até a tendência — cada vez mais difundida — dos espectadores em eventos ao vivo estragarem qualquer prazer que possam ter concentrando toda a sua atenção em gravar o que está acontecendo em suas câmeras de celular. Mas o anseio por memórias, a fixação em tornar as coisas memoráveis, é precisamente o que impede que algo memorável aconteça. Como observei em minhas anotações do box-set Caretaker, ‘amnésia anterógrada’ é uma analogia estranhamente adequada para nossa condição (pós-moderna), porque consiste na ‘incapacidade de formar novas memórias’”.
O curioso é que antigamente, quando eu frequentava o Lollapalooza e o Instagram vivia seu ápice, nada disso me afetava. Eu simplesmente era feliz nesses festivais, reclamava por osmose de uma banda ruim ou da fila do banheiro, e seguia para o próximo show cheia de energia interior mesmo vendo fotos de pessoas mais felizes ou bem-vestidas do que eu (e olha que isso era exatamente o que eu fazia, ficava caçando na multidão pessoas que parecessem perfeitamente alinhadas ao clima de festival para fotografar). Acho que a frustração dessa vez é mesmo por estar mais velha, saber que eu não quero mais passar por determinadas situações e mesmo assim me sentir mal quando sigo minhas vontades. É principalmente me sentir mal por me sentir mal.
Simplesmente ser
Na esteira do meu relato acima, acho que no fundo eu só queria conseguir ser a Gal, “simplesmente ser, não precisa pensar em ser”, que foi o ela disse em uma entrevista que li ontem. É inspirador testemunhar o impacto de uma vida vivida como ela viveu. Queria que ela tivesse tocado no Primavera.
É isso por hoje, bom domingo e até semana que vem!
Nathalia
Frase que Kate Moss disse em 2009 para o WWD que era um de seus mantras.
Adorei todas as reflexões, Nath. Sobre festivais, vivi algo parecido no RTM, e olha que eu fui em mto festival este ano e curti mto. Mas agora, mais cansada e sem o furor de sair de casa após tanto tempo trancada, me bateu uma necessidade de mais conforto e menos correria pra dar conta de tudo
Seu texto descreveu tudo que eu senti a respeito do Primavera!