Olá, bom dia, chegamos à edição 12 desta newsletter, a metade do meu projeto, e pela primeira vez decidi programar o envio em vez de acordar às 8h no domingo, um presente de mim pra mim mesma 😮💨 (espero que tenha dado certo e que nenhum evento catastrófico que faria enviar uma newsletter agora ser um ato insensível tenha acontecido).
Me deparei com o ensaio The Right Not to Work: Power and Disability quando estava pesquisando sobre jornadas de trabalho menores, as possibilidades e contradições do movimento anti-work e as ideias que a Jenny Odell apresenta no livro How to do Nothing. Já indiquei esse texto por aqui antes, escrito maravilhosamente pela artista e autora Sunny Taylor em 2004, mas eu foquei na defesa que ela fez de passarmos a sermos vistos como pessoas úteis para a sociedade de formas além da monetária. Outra parte do texto, no entanto, uma espécie de ode à dependência, tem reaparecido bastante na minha cabeça neste mês e resolvi me debruçar um pouco sobre ela hoje.
Sunaura Taylor é uma mulher com deficiência e, ao contrário do que costumamos ler, argumenta que o desejo por independência (para pessoas com ou sem deficiência) é de certa forma uma ilusão e a dependência não é algo ruim, ou pelo menos não deveria ser algo tão rechaçado como virou.
Falando especificamente sobre o seu ponto de vista, ela relembra que em outras épocas, quando o trabalho era menos focado em produtividade e mais em subsistência, pessoas com deficiência costumavam ser mais integradas ao sistema econômico e social. No feudalismo, por exemplo, havia muita gente morando junta e muito trabalho a ser feito para manter uma casa alimentada e aquecida e pessoas com deficiência tinham funções de acordo com suas possibilidades nessas tarefas domésticas. “Parece que o conceito do indefeso ainda não havia sido inventado, e esperava-se que elas também contribuíssem com o que pudessem. (…) Isso não quer dizer que a era feudal foi uma época utópica, mas sim uma tentativa de demonstrar que nossa concepção atual de deficiência e a posição das pessoas com deficiência não são absolutas e devem ser desafiadas e mudadas”, escreve ela.
Isso está intimamente ligado ao que ela chama de “uma forte ênfase na autossuficiência dentro da retórica estadunidense contemporânea”. Acho que podemos concordar que importamos isso para o Brasil e que o discurso do crescimento individual, através de empreendedorismo e outras frentes parecidas, nunca foi tão forte. Em sua coluna na ELLE, a jornalista Vivian Whiteman escreveu um ótimo texto que conversa muito com o de Sunaura. Ela coloca: “Se depender é tudo de ruim, então reina a tendência do “auto”. A autoestima, o autoamor ou amor-próprio, o autocuidado, uma certa ideia de unidade completa que não precisa absolutamente do outro, que chega para trocar ou para compartilhar estando, como se diz, ‘plena’. Não é esquisito isso? Não parece algo que se confunde com consumo, sabe, como se as pessoas não pudessem compartilhar indefinições e vulnerabilidades? Será que todo auto não passa pelo alter, pelo outro? Alguém aprende a amar sozinho? O próprio eu não é em boa parte outro?”.
Para pessoas com deficiência, Sunaura alerta, essa valorização extrema da “independência” faz com que sua vidas sejam “automaticamente vistas como tragicamente dependentes”. Mas o problema desse discurso, como também foi apontado pelo teórico Michael Oliver, é que a dependência é relativa. “As pessoas com deficiência definem a independência de forma diferente, vendo-a como a capacidade de estar no controle e tomar decisões sobre a própria vida, em vez de necessariamente fazer as coisas sozinhas ou sem ajuda.”
Sunaura complementa dizendo que o ideal de autossuficiência física é um subproduto da retórica da autossuficiência econômica e que ninguém participa do capitalismo de forma independente; não existe isso de indivíduo “self-made” — por mais que revistas de negócios queiram nos empurrar que sim. “O fato é que a deficiência revela nossa interdependência e ameaça a crença na autonomia”, arremata a autora ao fim do ensaio.
Em um trecho do documentário Examined Life, Sunaura aparece conversando sobre o assunto com Judith Butler em um passeio pela rua e dá exemplos de sua rotina. Ao entrarem em um brechó, ela pede a ajuda de Butler para provar um suéter. Depois, diz à vendedora que está no caixa que ela precisa entregar o troco primeiro pelas cédulas e depois pelas moedas para que ela consiga guardar um e depois o outro. Sunaura conta que esse tipo de interação social já foi motivo de nervosismo e que, de certa forma, ela considerava uma espécie de protesto político entrar em um café em Nova York e pedir ajuda para alguém. “Apesar de ser algo que todos precisamos, ajuda nesse sentido costuma ser algo menosprezado e desprezado na sociedade”, aponta ao frisar que depender ou ser auxiliada não significa ser indefesa.
Sunaura decidiu mudar para São Francisco, uma das cidades mais inclusivas e com mais acessibilidade do mundo, a fim de usufruir dos elementos físicos que, segundo ela, a ajudam também a ter mais receptividade social: “a acessibilidade física leva à acessibilidade social e à aceitação”. Ou seja, por causa de espaços públicos bem projetados, pessoas com deficiência saem mais à rua, são mais vistas, participam mais da sociedade e todos acabam se acostumando e entendendo a importância desses espaços e políticas.
Não consigo não pensar na frase popularizada pelo Marx “de cada qual segundo sua capacidade a cada qual segundo suas necessidades” ao ler e ouvir Sunny Taylor. Eu gosto dessa frase porque ela me parece um ótimo guia, principalmente considerando mais uma questão que Sunny aborda no texto, a de que todos nós somos apenas temporariamente do jeito que somos. Nós envelhecemos, nossas necessidades vão mudando e deveríamos estar aprendendo a aceitar e oferecer ajuda, lutando por políticas públicas coletivas e entendendo que já somos todos interdependentes e que quando abraçamos as necessidades de quem precisa isso beneficia a todos.
Esse assunto tem me interessado porque tem a ver com uma ideia de sociedade pautada pela solidariedade radical e também porque, em uma nota pessoal, eu sempre usei muito a palavra independente para me descrever, ou pelo menos descrever a imagem que eu gostaria de passar para o mundo, bem ao estilo “Independent Women” do Destiny’s Child. Quando eu era adolescente, meu sonho de futuro envolvia construir uma carreira e ganhar dinheiro por meio do meu esforço, não ter filhos e não casar, quase um manifesto contra expectativas limitantes de gênero. E, na minha cabeça, todos esses desejos poderiam se materializar integralmente quando eu passasse a morar sozinha. Foi (e na verdade continua sendo) uma batalha interna perceber que há dois anos e meio decidi morar com outra pessoa e que eu tenho gostado disso — minhas paranóias às vezes me puxam de volta a esse desejo de uma suposta independência, como se eu tivesse escolhido deixar toda ela de lado e quase falhado com o feminismo com a decisão de voltar a dividir o meu dia a dia com alguém depois de ter conseguido sair da casa da minha mãe.
A Haley Nahman tem uma edição da sua newsletter em que ela abre exatamente a pergunta “por que aspiramos morar sozinhos?”. Há várias experiências sendo relatadas nos comentários e elas vão do simbolismo de um rito de passagem para a vida adulta a uma vontade de provar para os pais e os amigos a capacidade de se manter financeiramente como uma demonstração de sucesso, passando ainda pela necessidade de sair de situações de abuso.
Todas essas questões são válidas e relacionáveis e dão pistas de por que a demonização da dependência existe — e entendo que ela faz ainda mais sentido quando olhamos para relações abusivas em casamentos ou no trabalho. Em seu texto que comentei acima, a Vivi Whiteman apresenta argumentos sobre isso por meio da análise de um trecho de um livro da Judith Butler: “(…) salvo exceções, não queremos ser dependentes nesses moldes. Não queremos depender onde depender significa ser explorado e sofrer violência sistemática. Todos nos mandam correr dessa armadilha. Até aí, tudo certo. Mas o que Butler diz é que isso do que fugimos é uma forma da dependência, e que a dependência não pode ser reduzida a isso. (…) São as forças que moldam esses quadros terríveis que nos dizem que o problema não são essas tais forças e suas consequências, mas a dependência em si.”
Se você leu minhas últimas newsletters, sabe que ando me questionando sobre medos e a vontade eterna de me isolar do mundo. No fim, querer ser autossuficiente, ser disciplinada, ser vista como resiliente e todas as questões que eu já trouxe aqui falam sobre a mesma coisa e é um exercício diário desconstruir esses conceitos que foram forjados em nós pelo capitalismo feat patriarcado. Eu já me orgulhei de conseguir ficar sozinha por semanas sem ver ninguém ou de ser vista como alguém que não pede muitos conselhos e não precisa de ajuda porque não consegue conceber a ideia de incomodar os outros. Hoje, no entanto, fico só triste mesmo por enxergar as consequência dessa falta de construção de um senso de comunidade dentro de mim, um que não enxerga pedir ajuda, seja física, emocional ou mesmo financeira como um símbolo de fraqueza, mas sim como uma parte essencial da vida das criaturas sociais que nós somos.
Essa última provocação do texto da Vivi me pegou bastante e vou finalizar com ela: “Se a dependência fosse redesenhada a partir de formas e organizações sociais radicalmente solidárias, como seria? O que restaria para os sanguessugas? Talvez a vida em sua potência de bem viver, que só pode ser com todas as vidas, e nunca só com os ‘escolhidos’”.
É isso por hoje, bora derrotar Bolsonaro dia 30, até semana que vem,
Nathalia
Reforçando…
Aconselho demais que você leia os textos que eu citei aqui hoje, principalmente o da Sunny Taylor, se você lê inglês, e o da Vivian Whiteman (e aqui o da Haley também). Elas escrevem sobre o assunto de forma brilhante, interessante e complexa, muito melhor do que eu, que apenas pesquei algumas partes deles para expressar como ando me sentindo.
que texto, Nathalia <3 obrigada por ter indicado!
É interessante ler gente sem deficiência refletindo sobre reflexões deficientes. Estou encantado pela newsletter.