Bom dia, obrigada por estar aqui mais uma semana :)
Quando for lançado no Brasil em outubro, “Crying in H Mart”, o livro hypado da Michelle Zauner, vai se chamar “Aos prantos no mercado”. O título é bem apropriado porque logo depois de passar pelas primeiras páginas, me vi aos prantos em um café enquanto esperava dar a hora do dentista.
Pode ter sido apenas projeção — ou a tal síndrome de personagem principal —, mas a primeira vez que ouvi falar desse livro foi como se eu estivesse me deparando com algo escrito por mim ou, no mínimo, feito para mim. Primeiro porque sou fã da banda da Michelle Zauner, a Japanese Breakfast, faz um tempo (cheguei a ir em show em 2019 quando estive em Tóquio), mas o interesse aumentou vertiginosamente com Jubilee, disco que eles lançaram no meio do ano passado e que continuo ouvindo diariamente.
Depois porque, assim como eu, a mãe dela é asiática, o pai dela é branco e judeu e se mudou pra praia e sua escrita tem bastante a ver com se reconciliar com questões de identidade. Essas são as partes factuais, mas o que realmente me pegou foi saber que o livro era sobre luto, tema que tem me interessado (a melhor palavra talvez seja sugado) nos últimos tempos.
Antes de continuar o texto, acho que é válido avisar que ela discorre sobre a morte da mãe dela no livro e que vou falar um pouco sobre isso nesta newsletter.
Um Apple Watch pode salvar a minha vida?
Medo é uma palavra que tenho usado bastante ultimamente e isso é meio que uma novidade. Além do meu pavor de agulhas e sangue, que me fez ficar anos sem fazer exames, não me lembro de conviver com nenhum outro tipo de medo afetando o meu dia a dia. De uns tempos pra cá, no entanto, me vejo regularmente recusando convites para sair porque às vezes sou tomada pelo medo de entrar em ubers, táxis ou transportes públicos. Outro dia fiquei 10 minutos na recepção de um prédio comercial esperando alguém aparecer para não precisar entrar em um elevador desconhecido sozinha. Penso que quero fazer uma viagem de carro, mas rapidamente todas as possíveis desgraças do caminho cortam o meu devaneio.
Desenvolvi medo de multidões, medo da natureza, medo de doenças, medo de pensamentos. Esses medos não chegam a me paralisar, mas são incômodos o suficiente para me limitar em algumas decisões. Às vezes, começo a chorar do nada em casa e se alguém me perguntasse o motivo, eu teria que dizer que é porque estou com medo da minha mãe morrer, a pessoa me perguntaria se ela está doente e, constrangida, eu teria que responder que não, ela está perfeitamente bem. Eu não perdi minha mãe como a Michelle Zauner, mas saber que vou um dia, e que esse dia fica cada vez mais perto conforme o tempo passa, anda invadindo minha mente e perturbando minha paz há meses. Talvez porque eu tenha um outro familiar doente e pensar sobre a morte dele acabou virando rotina, talvez por uma ansiedade inevitavelmente desenvolvida pela pandemia.
Estou em um hiato da terapia, então eu mesma fico constantemente me observando e me questionando se esses medos já passaram do limite do aceitável ou se são apenas reflexo da vida no Brasil em 2022, em que a violência tem sido não apenas normalizada, como estimulada, e em que nos ronda a insegurança financeira, política, ambiental...
Eu sei que o medo é um sentimento importante porque ele nos ajuda a sobreviver como um aviso de perigo, mas, como minha ginecologista me explicou, a vida contemporânea tem estímulos demais que confundem nosso corpo e nos deixam em um prolongado estado de alerta, um estado mental que não deveria ser frequente porque ele altera nossos sentidos e inflama nosso corpo (e, no meu caso, piora meu quadro de endometriose). Penso também que se estamos em alerta o tempo todo é muito mais fácil perdermos a noção do que realmente é um perigo.
Nesse contexto, o evento da Apple da quarta-feira foi um prato cheio para pessoas que andam paranóicas como eu. Não pretendo comprar um iPhone 14 porque acabei de terminar de pagar o meu 12 e tampouco tenho interesse em adquirir um Apple Watch Ultra porque não pratico nenhum esporte radical. Mas fiquei imaginando delirantemente que toda essa tecnologia de segurança desenvolvida para pessoas que podem se encontrar de verdade em risco deveria estar disponível para todos nós. Assistindo àqueles vídeos, comecei a pensar em coisas como: eu posso mesmo continuar vivendo sem uma comunicação via satélite à minha disposição? Eu deveria usar um relógio que monitora a temperatura do meu corpo 24 horas por dia para ter mais dados sobre possíveis problemas? Saber que esse mesmo relógio pode avisar meus contatos de emergência caso eu caia ou sofra um acidente de carro parece essencial. Talvez eu deva comprar um Apple Watch pra minha mãe.
Vi um review da apresentação que dizia que a Apple costumava vender “wonders” (maravilhas, sonhos, ilusões), mas agora ela vende medo. Tenho certeza que não foi todo mundo que pensou isso vendo os lançamentos, mas pelo menos mais uma pessoa se sentiu assim e isso me dá uma pista de que não estou sozinha em ver perigo em todo lugar. “O mundo já está pegando fogo. Você já está se queimando. Apenas certifique-se de viver para contar a história. (...) Antes um vislumbre comemorativo do futuro, o evento da Apple foi realmente sombrio em alguns momentos, refletindo e capitalizando nessa nossa era de incertezas. (...) A mais nova linha de produtos da Apple não promete tornar sua vida melhor por si só, mas eles farão o que puderem para evitar que sua vida fique (ainda) pior. Essa é uma razão bastante deprimente para gastar 799 dólares em um novo smartwatch. Mas imagine o que pode acontecer se você não fizer isso”, ironizou o autor no fim do texto — mas me fazendo pensar que se eu sofrer um acidente e não tiver um Apple Watch, a culpa será totalmente minha que não me preparei e me deixei morrer.
Eu não estou dizendo que não existem perigos reais com os quais devemos realmente nos preocupar e tentar nos precaver ao máximo, mas vale dizer que o medo é um dispositivo bastante comum para vender (pense nas centenas de opções de seguros), e que durante a pandemia essa foi uma tática usada à exaustão. Na Índia, por exemplo, uma pesquisa analisou que dentre 332 alegações que empresas fizeram em nome do coronavírus a fim de empurrar produtos para a população apenas 12 foram consideradas verdadeiras.
Li também recentemente que foi Freud foi quem entendeu que as inseguranças das pessoas as levavam ao excesso e à supercompensação. E que o seu sobrinho, Edward Bernays, conhecido como o pai das relações públicas, enriqueceu ao aplicar esses conceitos na propaganda. As suas ideias continuam ressoando e de jeitos ainda mais fortes, já que praticamente toda a informação que está ao nosso alcance hoje é marketing de certa forma, como apontou o autor Mark Manson no texto “How your insecurity is bought and sold”. Sim, eu trouxe um escritor de autoajuda pra cá, mas é que a aspa a seguir resume muita coisa: “Em um sistema capitalista, é economicamente atrativo alimentar as inseguranças de todos, seus vícios e vulnerabilidades, promover seus piores medos e lembrá-los constantemente de suas falhas e fracassos. Torna-se lucrativo estabelecer padrões novos e irreais, gerar uma cultura de comparação e inferioridade. Porque as pessoas que constantemente se sentem inferiores são os melhores clientes. Afinal, as pessoas só compram algo se acreditarem que isso resolverá um problema. Portanto, se você quer vender mais coisas do que problemas, você precisa encorajar as pessoas a acreditarem que existem problemas onde não existem.”
Realismo capitalista
A resenha sobre o evento da Apple termina com as frases “a mais nova linha de produtos da Apple não promete tornar sua vida melhor por si só, mas eles farão o que puderem para evitar que sua vida fique (ainda) pior” e “mas imagine o que pode acontecer se você não fizer isso”, o que me lembrou a estratégia usada pela campanha de Bruno Covas pela prefeitura de São Paulo para convencer a população de que votar no Boulos seria muito perigoso, um radicalismo, “imagine o que pode acontecer se você não votar em mim”.
Jones Manoel, no vídeo “Capitalismo, medo e dominação”, relembrou esse episódio ao contextualizá-lo junto à crise estrutural na qual o capitalismo se encontra atualmente. Ele argumenta que o capitalismo deixou de apresentar “um afeto positivo, uma mensagem de esperança” para a sociedade e passou a trabalhar muito mais na ideia do medo. “A mensagem é que sua vida não é boa, ela não vai melhorar e se você tentar mudá-la, ela pode piorar”. Se antes as pessoas acreditavam que suas vidas eram melhores do que as de seus pais, e que seus filhos poderiam ter uma vida ainda melhor, hoje conheço pouca gente que alimenta a esperança do segundo.
O medo sempre fez parte do capitalismo, vide Guerra Fria e o discurso do terror em cima dos comunistas, mas já houve um tempo em que existia espaço para debates de modelos de sociedade. Hoje, no que o escritor Mark Fisher chamou de realismo capitalista, temos a impressão de que mesmo imaginar outro tipo de sociedade vai terminar em barbárie, totalitarismo, fome e tragédia, como aponta Jones Manoel. “É como se a realidade atual fosse racional e qualquer coisa longe disso é uma loucura irracional e a gente vai cair numa situação muito pior. Você mobiliza fundamentalmente o medo, a paranoia social onipresente, seja com bandido, traficante, comunista, com militante do movimento social que vai invadir sua casa. E essa é a principal razão pra fazer com que as pessoas se apeguem à ordem dominante, um estímulo permanente, planejado em escala industrial do medo”, diz ele.
No trabalho, o medo da demissão também nos faz encontrar justificativas para acumular funções, nos deixa exaustos por causa disso e incapazes de imaginar soluções. Essa operação pelo medo é um dos motivos que nos faz ficar fora da rua, em todos os sentidos, nos cercar de proteção e nos paralisar frente a mudanças. Nada disso pode ser resolvido com um produto da Apple — e fico imaginando inclusive o que acontece quando estamos longe ou perdemos um objeto em que depositamos toda a nossa sensação de segurança?
Eu desenvolvi muitos medos durante a pandemia e claramente não me recuperei deles ainda. Como estratégia, inclusive, passei um tempão tentando me rodear de segurança, sair do “contato com o medo” o máximo que pude, o que englobou ficar muito em casa e não me expor na internet, incluindo escrever meus textos só pra mim. Ironicamente, isso foi me causando ainda mais medo de atividades cotidianas porque, olha só, deixei de ter contato com essa sensação. Minha mãe me falou outro dia que ela lida bem com problemas porque tem problemas demais e que pessoas que vivem fugindo dos problemas pifam quando a menor coisa aparece. Foi em tom de piada, mas existe uma sabedoria.
Acho que foi por isso que decidi começar a escrever na internet e tentar ser lida por outras pessoas. Sempre me perguntei qual era a diferença de escrever só para mim, no meu bloco de notas, ou escrever em público, se tinha a ver com uma busca por validação ou ego. Não descarto essas possibilidades, mas acho que a diferença e o apelo de escrever em público é escrever com intenção, para além de gerar comentários e conversas. Quando a gente escreve sabendo que alguém nos lerá, entramos em contato com sentimentos como cuidado, empatia, delicadeza, empolgação e também o medo (de ofender, de falhar, de viralizar, de ser ignorado...). E isso é interessante, essencial eu diria.
Por medo, eu estava também adiando começar o livro da Michelle Zauner. Afinal, como seria ler sobre perder uma mãe do ponto de vista de alguém que tem quase a minha idade e com quem me identifico tanto? Mas encarar isso tem sido extremamente útil. Até para tentar enxergar novas formas de lidar com a coisa mais certa e natural de todas, a morte.
É isso por hoje e até semana que vem,
Nathalia
Indicações de links na ordem de aparição (no final pra não atrapalhar a leitura do texto):
Livro da Michelle Zauner, “Crying in H Mart”, por enquanto só em inglês na Amazon. E playlist com todas as músicas do álbum Jubilee no Youtube.
Texto sobre síndrome da personagem principal, da Haley Nahman, na newsletter Maybe Baby
Texto How your insecurity is bought and sold, do Mark Manson
Vídeo Capitalismo, medo e dominação, do Jones Manoel
Livro Realismo Capitalista, do Mark Fisher, tem à venda em vários lugares
Ah, uma última coisa: eu sempre penso em colocar mais indicações no fim das newsletters, mas acabo desistindo porque acho que elas já são longas demais. Então estou cogitando usar um recurso do Substack que chama Sections para lançar um spin-off desta newsletter.
Seria uma lista temática, enviada uma vez por mês, com indicações de links, leituras, produtos, lugares, e dicas no geral (e você poderia se desinscrever só dela quando quisesse sem precisar sair da lista oficial). Minha pergunta é: caso você ache essa ideia legal, qual dia seria melhor pra você? ⤵️
pra quem se interessou pela leitura: é o livro do mês do clube Bússola, da Dois Pontos :) https://www.doispontos.com.br/assinaturas